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Ensaio: Zeca Camargo deve indenização à família de Cristiano Araújo?

 

Discordo da sentença: “Zeca Camargo é condenado a pagar R$ 60 mil por danos morais ao pai e à empresa de Cristiano Araújo”, conforme notícia da Folha de S. Paulo de 23.01.2018, (em https://f5.folha.uol.com.br/musica/2018/01/zeca-camargo-e-condenado-a-pagar-r-60-mil-por-danos-morais-ao-pai-e-a-empresa-de-cristiano-araujo.shtml).

O polêmico caso se seguiu a uma crônica narrada por Zeca Camargo “a convite da GloboNews”, para o Jornal das 10, exibida em 27.06.2015 (em https://www.youtube.com/watch?v=Tw91ubNSYu8). Segundo a família do cantor, o jornalista teria feito um deboche “cruel, infundado, insensível e preconceituoso” acerca da comoção nacional causada pela morte de Araújo. A decisão da juíza Rozana Fernandes Camapum, da 17ª Vara Civil de Goiânia, corroborou essa visão. A magistrada entendeu que Zeca Camargo “está autorizado a fazer crônicas e falar com emoção, mas não deve descambar para a agressão gratuita, desprestígio e humilhação à pessoa humana na narrativa”, alegando que ele “não respeitou o momento do luto do pai, da família, do empresário e dos fãs do falecido”.

A resolução da juíza Rozana Fernandes Camapum representa um perigoso precedente para jornalistas e críticos literários ou musicais. Isso porque a queixa apresentada pela família do artista não pode ser vista apenas sob o manto subjetivo. Há muito esse critério se desgarrou da teoria dos danos morais: afinal, o que seria dor? E como aferir essa dor, essa humilhação? A observação do comportamento humano não deixa dúvidas de que certas pessoas podem se sentir humilhadas em determinadas situações ao passo que outras passariam ilesas pelas mesmíssimas circunstâncias. Como se vê, a ofensa não se deixa aprisionar por conceitos generalistas.

O momento da morte de um artista, político ou qualquer pessoa pública é gatilho para a comoção nacional. Trata-se de um fenômeno inerente à condição desses indivíduos. Diante da finitude, desponta o impulso coletivo de prestar a última consagração àquele, segundo os respectivos admiradores, digno de tal reverência. Quem há de esquecer a multidão abatida pela morte de Getúlio Vargas ou Ayrton Senna? E, pelo motivo inverso, o lamentável e injusto espetáculo da apatia popular em face da partida do sambista Cartola? Na ocasião, o féretro do compositor foi acompanhado apenas por sambistas e populares. Cena nada comparável à mobilização gerada pelo falecimento de outros artistas e pessoas públicas. Assim, evidente e inerente é a repercussão da morte por jornalistas.

Diante da fúria dos fãs de Cristiano Araújo, Zeca Camargo publicou sua versão dos fatos, como um pedido de desculpas, no jornal Folha de S. Paulo, de 29.06.2015, “Cobertura da morte de Cristiano Araújo reflete empobrecimento da pauta cultural”, em http://f5.folha.uol.com.br/celebridades/2015/06/1649335-cobertura-da-morte-de-cristiano-araujo-reflete-empobrecimento-da-pauta-cultural.shtml). No artigo, o jornalista frisa que a motivação para comentar a catarse desencadeada pela morte do cantor, segundo ele, “ao mesmo tempo tão famoso e tão desconhecido”, foi tão somente sublinhar o empobrecimento da nossa pauta cultural, tendo em vista “a ausência de fortes referências culturais” na atualidade brasileira. Reproduzo o último parágrafo desse esclarecimento: “E não porque o sertanejo não é erudito. Mas porque ele foi eleito como tal, numa terra que só é de cego porque ninguém tem a competência de lembrar que tem pelo menos um olho para reinar”.

Em seu “pedido de desculpas”, Camargo sustenta o que havia postulado na crônica original: que Araújo certamente tinha talento e poderia, se a morte não tivesse interrompido sua carreira, crescer e vir a se tornar uma “paixão nacional”, status ainda distante da realidade do cantor. Por outro lado, evita lançar novas luzes sobre o polêmico posicionamento, segundo o qual o público teria exagerado em sua reação, visto que muitos dos que manifestaram pesar pelo sertanejo, juntando-se à massa enlutada, sequer conheciam o artista.

Certo que a família pode ter se sentido humilhada frente a tais declarações, mas quantas pessoas não são humilhadas por ofensores renitentes (casos para os quais os juízes chegam a fazer mutirões a fim de diminuir o abarrotamento do judiciário) e nossos tribunais respondem com sentenças de improcedências: transtornos habituais da vida moderna.

Convém lembrar as críticas ácidas do sergipano Sílvio Romero (1851-1914), para muitos, o “pai” de nossos críticos, ou do pernambucano Álvaro Lins (1912-1970), que mais parecia julgar a pessoa que a obra. Essas gerações de críticos costumavam afirmar, sem cerimônias: “Isto não é literatura”. Em seguida, como era de se esperar, viravam alvo dos impropérios proferidos por escritores ofendidos com tais posicionamentos. Supomos que um escritor viesse a falecer dias após uma crítica dessa natureza. Sua família poderia propor ação de danos morais? E se a crítica fosse formulada após seu falecimento, seria o caso de danos morais para a família e, principalmente, para uma empresa ligada à atividade do escritor em questão? Certo que o Superior Tribunal de Justiça pacificou a possibilidade de danos morais às pessoas jurídicas, Súmula 227, mas esta tem recente nova interpretação por essa Corte, não franqueando a reparação simplesmente como damnum in re ipsa (dano pelo próprio fato). Na época de Sílvio Romero, não havia essa reparação. Álvaro Lins, por sua vez, corria o risco ou da vigência do parágrafo 2º, do artigo 1.547, do Código Civil de 1916, ou da Lei de Imprensa de 1967, que já permitiam danos morais por injúria.

Por outro lado, a alegação de que o momento da crítica trazida a público por Zeca Camargo não foi o ideal não cabe ao caso. Como dito, se o artista deve conviver com os transtornos habituais de sua profissão em vida (a crítica), quiçá sua família após a morte daquele. Também, forçoso lembrar: a questão do momento da crítica como fundamento para uma decisão de indenização em casos como este seria o mesmo que criar uma limitação ao direito fundamental do jornalista de liberdade de expressão, amparados expressamente em nossa Constituição, artigo 5º, incisos IV, IX e XIV, e artigo 220, parágrafos 1º e 2º. Na prática, equivale a obrigar o jornalista a escrever sobre um artista falecido somente quando não restasse mais interesse da sociedade, vez que o período de luto da família transborda lapso normal das famílias de personalidade que não públicas (por exemplo, homenagens diárias, semanais, mensais, anuais, de fãs e amigos, que acabam por prolongar o luto da família do artista).

Há argumentos para as duas partes, contudo é fato que, em face da morte do próximo artista de renome, o jornalista que escrever ou narrar suas impressões sobre a reação dos fãs ou sobre a obra do falecido correrá o risco da sanha dos danos morais, que, a meu ver, mereciam ser tratados neste país com mais seriedade. Por exemplo, há casos de morte em acidentes de vítimas das classes mais baixas, para os quais o valor da indenização, não raro, é o mesmo ou pouco superior (às vezes, até menor!) ao valor de R$ 60.000,00, quantia concedida para a família do artista Cristiano Araújo e para a empresa que cuidava da carreira do cantor sertanejo.

Casos de ofensa à memória de falecido e sua reparação são previstos no Código Civil de 2002, artigo 12 e 20, e a proteção dos danos morais é direito fundamental em nosso direito (artigo 5º, incisos V e X, da Constituição Federal), mas forçoso que essas ofensas sejam graves, para não se tornar uma empresa essa hipótese legal (sobre a plena possibilidade de “danos morais reflexos” para o caso de morte após a Constituição de 1988 e conforme o Código Civil de 2002: https://www.academia.edu/35705982/Considera%C3%A7%C3%B5es_sobre_os_danos_morais_reflexos).

Ainda, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (também do Supremo Tribunal Federal) é firme no sentido de proteção da liberdade de expressão, de informação, artística e cultural (como é a crítica), independente de censura ou autorização prévia (repetimos: artigo 5º, incisos IV, IX e XIV, e artigo 220, parágrafos 1º e 2º, da Constituição Federal), respeitadas as garantias de inviolabilidade da intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas (artigo 5º, inciso X, também da Constituição Federal), considerando inclusive a questão das pessoas públicas.

Aplicando-se ao caso “Família de Cristiano Araújo x Zeca Camargo”, nem responsabilidade civil, nem criminal poderiam ser questionadas; por exemplo, seguem julgados do Superior Tribunal de Justiça: “2. As pessoas consideradas públicas estão sujeitas a maior exposição e suscetíveis a avaliações da sociedade e da mídia, especialmente os gestores públicos de todas as esferas de poder, mesmo quando envolvidos em processos judiciais – que, em regra, não correm em segredo de justiça – como partes, procuradores ou juízes. (…) 4. A ponderação trazida pelo articulista procura rechaçar a tese alegada pela União de se exigir a identificação dos responsáveis pela prática de tortura dentro da chamada “Casa da Morte”. Para isso, faz uma análise crítica da atuação da procuradora, mas sem transbordar os limites da garantia de liberdade de imprensa, a ponto de configurar abuso de direito. 5. Agravo regimental provido, para conhecer do agravo e dar provimento aos recursos especiais interpostos (…) para julgar improcedentes os pedidos iniciais. Prejudicado o apelo apresentado pela parte autora.” em STJ, AgRg no AREsp 127.467/SP, Relator Ministro Marco Buzzi, Relator para Acórdão Ministro Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, julgado em 17.05.2016; “1. Restando claro que o redator-chefe do jornal agiu com animus narrandi e não com o fim de difamar o magistrado objeto das críticas dos outros dois pacientes, veiculadas entre aspas na matéria por aquele assinada, ausente o dolo específico necessário à caracterização do crime de difamação em questão e, via de consequência, atípica a conduta que lhe foi imputada. 2. Constatada a atipicidade da conduta do redator-chefe, sem necessidade de profunda incursão no acervo fático-probatório da causa, tem-se como configurada uma das excepcionalíssimas hipóteses de trancamento da ação penal pela via do habeas corpus (arts. 395, III, c/c 648, I, do CPP).” em STJ, HC 157.385/PA, Relator Ministro Jorge Mussi, 5ª Turma, julgado em 06.12.2011.

Assim, inclino-me no sentido de que não caberia indenização neste caso (repito: neste caso, porque objeto de crítica típica daquela que o artista e a pessoa pública têm como transtorno habitual). E enfatizo que a liberdade de expressão, desde que respeitados os direitos à honra, intimidade e imagem (o que ocorreu neste caso), deve ser preservada, sob pena de se tornar verdadeira censura travestida de reparação por danos morais, os quais, no Brasil, resultam de quase um século de luta de juristas até sua plena efetivação na Constituição de 1988 (enquanto na Europa já eram plenamente reconhecidos no início do século XX). Portanto, esta matéria (danos morais) não deve servir para outros fins que não sejam os próprios.

 

Eneas Matos

Professor Doutor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP. Mestre pela Universität Hamburg – Alemanha. Doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP. Advogado em São Paulo

 

Publicado em:

https://www.academia.edu/35789245/Ensaio_Zeca_Camargo_deve_indeniza%C3%A7%C3%A3o_%C3%A0_fam%C3%ADlia_de_Cristiano_Ara%C3%BAjo

E também em:

https://eneasmatos.jusbrasil.com.br/artigos/539604753/ensaio-zeca-camargo-deve-indenizacao-a-familia-de-cristiano-araujo?ref=topbar

Visto em 29 Jan 2018.

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